Tecnomagia

A Falácia das Pseudo-ciências

A Torre de Babel é uma parábola bíblica que trata de coletividade, soberba e discórdia humanas. Reza a lenda que os seres-humanos eram um só povo, com uma só cultura e uma só língua, até que resolveram construir uma torre que chegaria até os céus. A torre foi construída próximo da Babilônia e poderia ser um portal que conectasse o mundo físico com os reinos espirituais.

Um dos deuses mais tiranos que viviam nos reinos espirituais, Yahweh, El ou Enlil, não gostou nada disso, e enviou seus emissários (um deles sendo o demônio Purson) para confundir os humanos e destruir seus planos de soberba. A Torre caiu, e os seres-humanos passaram a falar 72 línguas, se dividindo em 72 culturas que passaram a ser supervisionadas por 72 anjos. Ninguém mais se entendeu, e ninguém mais conseguiu realizar projetos deste porte, que requeriam esforço conjunto de toda a humanidade.

Imagem: A Torre de Babel (Vienna) — Pieter Bruegel the Elder, 1563.

Para que possamos nos comunicar, é preciso haver certo alinhamento sobre o que significa cada palavra do idioma que estamos utilizando. O que eu penso só pode ser transmitido a outra pessoa para que ela pense sobre isso por meio da linguagem, e quando a linguagem entra em jogo o que eu penso já perde um pouco da riqueza original de graus de liberdade. Além disso, existe o que eu penso que significam as palavras que uso, e existe o que a pessoa pensa que significam as palavras que eu usei, compreendendo e interpretando da forma que ela achar mais adequada.

Felizmente, existem dicionários que nos auxiliam neste alinhamento da linguagem coletiva, muito embora as definições precisem de outras palavras (e aí dependemos do que achamos que significam estas outras palavras, e o que significa cada palavra da definição delas no dicionário, etc, em uma cadeia ou até mesmo um ciclo de significados). Em prol da eficiência na comunicação, porém, vivemos um pacto coletivo de boa vontade onde cada pessoa tenta interpretar o que a outra disse com honestidade e levando em conta o contexto da situação e o background de cada interlocutor.

Mas e quando a boa vontade é substituída por má vontade?

Imagem: Torre de Babel — Lucas van Falckenburg, 1535.

Vamos às Definições

Ciência — Conhecimento profundo sobre alguma coisa. Utilização desse conhecimento como fonte de informação. Reunião dos saberes organizados obtidos por observação, pesquisa ou pela demonstração de certos acontecimentos, fatos, fenômenos, sendo sistematizados por métodos científicos ou de maneira racional.

Pseudociência — Saber organizado que carece do rigor de uma ciência. Qualquer tipo de informação que se diz ser baseada em fatos científicos, ou mesmo como tendo um alto padrão de conhecimento, mas que não resulta da aplicação de métodos científicos.

Método científico — Refere-se a um aglomerado de regras básicas dos procedimentos que produzem o conhecimento científico, quer um novo conhecimento, quer uma correção ou um aumento na área de incidência de conhecimentos anteriormente existentes.

Aqui já temos uma primeira constatação interessante: se a definição atual de ciência deriva do método científico atualmente considerado como válido (observação, fato, hipótese, teste de hipótese, teoria, reavaliação), e se este método científico começa a ser esboçado por Ibn Al- Haytham (965–1040), passando por René Descartes (1596–1650) até se consolidar no período do Iluminismo (1715-1789), não podemos falar que um corpo de conhecimento anterior a 965 é uma pseudociência, ou mesmo que conhecimentos sistematizados de 965 a 1789 o sejam, sem correr o risco de sermos anacrônicos. Além disso, um corpo de saber recente que nunca se pretendeu “ciência” também não pode ser chamado de pseudociência.

Anacronismo — Erro de cronologia que geralmente consiste em atribuir a uma época ou a um personagem ideias e sentimentos que são de outra época. Atitude ou fato que não está de acordo com sua época.

Epistemologia

A discussão do que é ciência, portanto, deve ser feita considerando horizontes temporais distintos, e também contextos distintos, além é claro da definição que está sendo utilizada.

A epistemologia nos mostra que conhecimentos hoje considerados “mitologia” e “folclore” sempre estiveram entrelaçados com o desenvolvimento das ciências. Unicórnios e dragões figuram nos compêndios zoológicos do Século XVIII, enquanto os mapas da África até o Século XIX mostram uma cordilheira de montanhas chamada Kong que nunca existiu. As artes liberais do trivium (lógica, gramática e retórica) e do quadrivium (aritmética, astronomia, música e geometria) não eram as únicas da Idade Clássica (800 AC — 476 DC), havia também as artes mecânicas delegadas aos escravos e as artes ocultas dos homens de alto prestígio, além dos trabalhos de diversas guildas que eram de suma importância à sociedade.

É também importante lembrar que o desenvolvimento do conhecimento sempre se baseou em observação e interpretação, mesmo antes do conceito de “método científico” entrar em jogo. Egípcios consideravam que abutres fêmea se reproduziam sozinhas porque não viam os machos; pessoas que comiam plantas e gostavam poderiam acrescentá-las ao seu cardápio; pessoas que comiam plantas e morriam deixavam ali uma dica para que outros não comessem; uma pessoa vendo que ordenhadores de vacas tinham maior imunidade a doenças desenvolveu as vacinas; povos que faziam rituais e percebiam resultados logo acrescentavam estes rituais a seus livros, grimórios e calendários festivos.

Hoje também temos diversos campos do saber, como as ciências exatas, ciências humanas, ciências biológicas, ciências da natureza, ciências sociais, ciências cognitivas, ciências estatísticas, nanociências, entre outras, dentre uma miríade de subdivisões. Nenhuma dessas ciências é menos ciência que as outras, muito menos uma pseudociência, e algumas delas inclusive ainda se encontram em estágio inicial de delimitação, tendo recentemente se desprendido de um campo mais geral após acumularem mais conhecimento do que seria humanamente possível estudar ao longo de uma vida.

Imagem: Torre de Babel — Hans Bol, ~1570.

A reviravolta da quântica

A física quântica deu uma chacoalhada em nosso conceito de realidade, e também na própria definição de método científico utilizada para interpretar experimentos.

Hoje se sabe que corpos muito grandes apresentam efeitos da Relatividade, e que corpos muito pequenos apresentam efeitos Quânticos, sendo que no segundo caso um dos efeitos é a possibilidade de que um ente físico (“conteúdo”) se manifeste em mais de um formato aparente (“forma”). Agora entende-se que para sistemas quânticos não devem ser utilizados os resultados de apenas poucos experimentos, mas sim os resultados de milhares de experimentos, analisados estatisticamente, para que se possam entender as probabilidades de decaimento do sistema para seus diversos estados possíveis.

As ciências quânticas também não são menos científicas por isso, apenas são ciências que requerem um outro tipo de interpretação. Entende-se que alguns efeitos podem ser observados apenas poucas vezes, e que os resultados dos experimentos podem mudar de um momento para outro, porém é o coletivo dos resultados que irá se manter e permitir a análise das funções de onda (ou seja, o comportamento intrínseco dos entes físicos contendo todas as suas possibilidades de estados).

É interessante lembrar que mesmo os bastiões da ciência como Einstein se recusaram a aceitar os resultados confusos que se apresentavam na física quântica, o que pode ter ocorrido devido a serem quebradas noções milenares de realidade. Mas a realidade bate à porta, os experimentos continuam, e mesmo os negacionistas (risos) são obrigados a aceitar que a verdade é aquela, caso não morram antes.

Como assim, a realidade depende do observador? Como assim um elétron pode ser partícula ou onda? Eu quero as minhas certezas de volta!

O que é Étnico?

Na discussão sobre o que é ciência, vemos também uma parte interessante que fala sobre as etnociências.

Etnociência — estuda o conhecimento das populações humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir o conhecimento humano acerca do mundo natural, as taxonomias e classificações populares.

As etnociências buscam analisar a sabedoria popular (folk-lore!) com respeito, sem refutar de antemão os conceitos, entendendo que diferentes culturas podem estar falando sobre as mesmas coisas usando linguagens diferentes. Neste âmbito, tentam utilizar as ferramentas mais avançadas no campo científico e tecnológico para poder analisar as verdades conhecidas por diversos povos. Se uma cultura fala por séculos a fio sobre algum conceito, ele tem algo de verdade, mas qual exatamente a verdade contida ali, traduzida para o meu paradigma e para a minha linguagem?

Naturalmente, o conceito de etnociência está ligado ao conceito de étnico, e esta definição não é única, sendo até mesmo pejorativa em alguns casos. Étnico é aquilo que faz parte de uma cultura, mas o termo é usado geralmente para descrever culturas não majoritárias, não hegemônicas. Se a cultura “padrão” é a cultura colonizada do recorte “homem cis branco velho hétero cosmopolita ocidental”, então qualquer outra cultura é “étnica”. Neste sentido, conhecimento produzido pela cultura padrão será simplesmente “ciência”, e conhecimento produzido por qualquer outra cultura será “etnociência”.

Imagem: Torre de Babel — Abel Grimmer, 1595.

O pensamento colonizado

Diante de todo o exposto, vemos que a definição de pseudociência (e de etnociência!) depende da definição de ciência. E que essa definição de ciência é colonial. Por outro lado, vemos também iniciativas decoloniais que resgatam todos os saberes ancestrais empurrados para baixo do tapete junto com o sangue dos povos originários, e tentam estudá-los com respeito entendendo que sua linguagem deve ser interpretada no contexto devido.

Pajés utilizam chás e sufumigações em rituais, sendo que as substâncias químicas ali contidas também fazem sentido do ponto de vista puramente farmacológico. Os aspectos ritualísticos auxiliam na ativação da mente, e fazem parte da prática por tratarem deste outro âmbito do organismo humano. A imposição de mãos tem sido recentemente estudada, chegando-se à conclusão que pode sim ter efeito de cura. Felizmente vivemos na Era da Informação, então basta que quem quiser se aprofundar neste estudo pesquise, pois as fontes são inúmeras, e têm se multiplicado nos últimos anos.

O outro lado da moeda

O outro lado das pseudociências seriam as vertentes mágico-espirituais que prometem curas milagrosas e realizam um desserviço ao indicarem explicitamente o abandono do acompanhamento médico e psicológico tradicionais.

Embora seja visto com menos frequência, este outro lado aparentemente mancha a reputação de todas as pessoas honestas, na cabeça de alguém que já tenha um pé atrás com a religião ou não acredite no que não vê. Porém, reforço aqui que isto nem sempre se trata de pseudociência, uma vez que tais vertentes (1) são sim corpos de saber, portanto ciências (ocultas, simbólicas) (2) na maioria das vezes não se propõem a ser ciências (humanas, exatas, biológicas); e (3) na maioria dos casos se desenvolveram antes da própria definição de método científico.

O que acontece é que, como em qualquer outro campo (até na ciência!) existem pessoas desonestas e irresponsáveis. Mas isto desde que o mundo é mundo. Sendo assim, vamos deixar o termo “pseudociência” para o que realmente é pseudociência: um corpo de saberes que se diz de um campo da ciência que não é, que indica “estudos científicos” inexistentes e/ou que deliberadamente apresenta riscos ao público por divulgar conhecimento científico incorreto.

No mais, cabe aos produtores de conteúdo mágico, espiritual e simbólico deixar claro do que estão falando. Se a informação é histórica, diz-se que é histórica; se é mitologia ou ficção, que isto fique claro. Se é comprovado ou se é hipótese, se é obtido de referência bibliográfica ou de experiência própria, se é comprovado ou não por estudos, isto deve ser explicitado.

E sempre que pudermos é interessante não utilizar termos que também são utilizados por algum campo da ciência sem antes contextualizar o diferente significado, para que não haja confusão. Mas às vezes também temos que pensar que as ciências contemporâneas pegaram termos de corpos de conhecimento anteriores e os ressignificaram, então em muitos casos o que estará ocorrendo é até mesmo um resgate de significados.

Imagem: Torre de Babel — Tobias Verhaecht, ~1600.

De qualquer forma, estas estratégias de comunicação são importantes para que, ao tentarmos chegar cada vez mais longe no conhecimento do nosso Cosmos enquanto humanidade, a nossa torre de Babel não seja destruída devido à falta de compreensão e à discórdia.

Gabriel Costa
Engenheiro químico, estudante de diversas vertentes de ocultismo, artista circense, Drag Queen e ilustrador. Possui maior afinidade com estudos oníricos, interpretação de sonhos e projeção astral, além de divinação por sonhos, Tarot, LeNormand, Anjos e Demônios.
gabriel.de.figueiredo@gmail.com