Tolkien: cosmogonia e panteão
Eru, chamado pelos elfos de Ilúvatar, manifestou diversas entidades, correspondentes às suas diversas facetas. Esses eram os Ainur, a quem os elfos chamavam Valar. Todos se sentaram em torno de Ilúvatar, e juntos eles entoaram uma canção.
Um dos Valar tentava levar a canção para acordes menores, e adicionava notas dissonantes, mas os outros Valar cantavam mais alto e a canção retornava aos acordes maiores e às notas harmônicas. Algumas das vezes, este Valar quase conseguiu fazer a canção ir para uma harmonia lúgubre em acordes diminutos, mas os outros não permitiram, e a canção fluiu.
Após o fim da canção, Ilúvatar disse que aquela música seria manifestada na forma de uma realidade física, e que tudo o que havia sido cantado seria transformado em matéria e movimento. Assim, criou Eä, o Cosmos, que ardia em um brilho intenso, e no Cosmos foi criada Arda, a Terra Média. Os Valar, então, desceram até a Terra, para vivenciarem a música que haviam criado.
Imagem: Eru Ilúvatar, por Rudy Chidiac — link.
Essa foi a criação do Cosmos no universo fictício de Tolkien, do qual fazem parte as histórias O Hobbit, O Senhor dos Anéis, entre outras. Esta cosmogonia é descrita no Silmarillion, uma espécie de Gênesis Tolkiano que também descreve as raças e os lugares da Terra-Média, assim como os acontecimentos das primeiras Eras.
Os Deuses de Tolkien (Valar, no masculino, e Valier, no feminino), assim como os Semideuses (Maiar) e as Raças, correspondem a elementos da natureza e do inconsciente, e a traços de personalidade distintos. Possuem bastante semelhança com os deuses Nórdicos e com a própria escatologia Cristã, além dos seres descritos na Alquimia, mas também formam um panteão próprio, que pode ser utilizado em práticas mágicas ou como oráculo. As línguas e os alfabetos criados pelo autor, como o Élfico, o Órcico e as runas dos anões, já vêm sendo extensamente usados para este fim.
Os Valar
- Manwë, o Céu. Esposo de Varda, comanda os céus e o ar de Arda. Por ser o Valar que melhor entendia os princípios e os pensamentos de Ilúvatar, foi declarado o Rei dos Valar, e o Senhor da Respiração da Terra. É um líder compreensivo, e evoca o arquétipo da liderança com sabedoria, além da leveza, da compreensão dos desígnios do Cosmos, e da clauriaudiência. Manwë consegue ver tudo o que se passa em Arda quando sua esposa, Varda, está próxima.
- Varda, as Estrelas. Esposa de Manwë, é a mais bela dentre os Valar, e também a mais temida pelo adversário de Manwë, Melkor. Sua luz é um reflexo da luz de Ilúvatar, e por isso os seres que agem contra a Ordem do Cosmos não suportam encará-la, sendo, por outro lado, reverenciada pelos elfos. Representa a justiça imparcial, e a clarividência. Varda consegue ouvir tudo o que se passa em Arda quando seu esposo, Manwë, está próximo.
- Yavanna, Animais e Plantas. Esposa de Aulë, plantou as primeiras sementes em Arda, que deram origem a musgos, samambaias, grama e árvores, atraindo animais que ali vieram morar. Evoca o aspecto de fertilidade e de frutificação, sendo a grande imperatriz.
- Aulë, as Montanhas. Esposo de Yavanna, foi responsável por forjar as lâmpadas Illuin (a Lua) e Ormal (o Sol), que foram cheios com a luz de Varda e levantados aos céus por Manwë, além de ter criado a corrente que aprisionou Melkor — a matéria que aprisiona o espírito. Também foi o criador dos anões, e os escondeu nas profundezas de seus domínios. Representa a matéria e a capacidade de moldá-la, além da resistência.
- Nienna, a Lamentação. Vive sozinha, nos Salões de Mandos, e possui lágrimas capazes de curar as dores daqueles que a procuram. Suas lágrimas também expurgam o mal e as infecções, permitindo que a vida surja novamente após a finalização de um ciclo.
- Lórien, os Sonhos. Casado com Estë, é irmão de Mandos e Senhor das florestas onde vivem os espíritos. Provê visões e sonhos, podendo por meio deles indicar o melhor caminho a seguir, ou comunicar profecias.
- Estë, a Cura. Casada com Lórien, vive junto a ele nas florestas, ajudando na restauração dos guerreiros que ali buscam ajuda. É associada ao aspecto de cura, e à restauração do corpo e da alma.
- Mandos, a Morte. Casado com Vairë, rege os submundos e os espíritos dos que foram assassinados. Não se esquece de nada, e sabe de todas as coisas que acontecerão no futuro, desde que já tenham sido cantadas na Canção Primal. É também o juiz dos Valar, e pronuncia os julgamentos que foram dados por Manwë. É o arquétipo do julgamento, trazendo a finalização de ciclos e a distribuição das merecidas recompensas ou revezes, e também está relacionado aos conhecimentos sobre o futuro.
- Vairë, a Tecedeira. Casada com Mandos, tece mortalhas com fios diáfanos, e também estandartes para os palácios dos Valar. Tece tapeçarias descrevendo todos os acontecimentos passados, que pendura nas paredes dos Salões de Mandos, o palácio que sempre aumenta com o passar dos anos. Está relacionada aos destinos, ao entrelaçamento das trajetórias e à escolha de caminhos, e também aos conhecimentos sobre o passado.
- Ulmo, as Águas. Vive sozinho, no oceano, mas pode também se mover pelos mares, lençóis freáticos e rios. É associado à arquitetura, com suas águas que esculpem a matéria, e à capacidade de adaptação. Melkor não possui poderes nas águas, pois estas são mutáveis e inconstantes, sendo compreendidas em sua plenitude apenas por Ulmo.
- Oromë, o Trovão. Casado com Vána, possui uma trombeta poderosa para liderar tropas, e caça com a ajuda de seu lobo gigante Huan. É a iniciativa em sua forma mais pura, incisiva e tempestuosa. Ataca os inimigos com lampejos de sua poderosa razão, e os persegue caso seja necessário. Também associado à liderança racional, em batalhas.
- Vána, as Flores. Casada com Oromë, representa a força feminina se desabrochando de forma imperfeita e bela. Também associada à juventude, e à beleza intrínseca das formas de vida.
- Tulkas, a Guerra. Casado com Nessa, chegou a Arda em auxílio dos Valar, para derrotar Melkor em sua tentativa de tomar o controle da Terra Média. Ao vê-lo, Melkor fugiu para o Norte, onde começou a erigir um império que mais tarde se chamaria Mordor. Tulkas é associado à guerra e à bravura instintiva, lutando apenas com seus punhos para defender Arda.
- Nessa, a Luz. Casada com Tulkas, e irmã de Oromë, pode ser vista dançando nos gramados da morada dos Valar. É associada também à rapidez e à agilidade, e de forma geral à pureza, com seu caráter luminoso.
- Melkor, a Sombra. É o adversário, que observa o império construído pelos Valar somente para tentar destruí-lo. Após fugir de Tulkas, se escondeu no Norte, onde não podia ser visto pelos outros Valar, e começou a angariar servos e seguidores, além de ser informado constantemente dos acontecimentos por seus espiões. Apesar de encarnar o aspecto da Sombra, as maiores mudanças e evoluções que ocorrem em Arda são iniciadas por meio de sua ação transformadora. Suas investidas contra os Valar levaram à criação de diversas raças, além do surgimento de vários reinos. Evoca o aspecto da mudança, além da parte do inconsciente que deve ser analisada, compreendida e absorvida na personalidade.
Os Maiar
- Ilmarë, a Serva. Cuida de Varda, sendo sua criada mais amada. Representa a humildade e a caridade, além do cuidado com o próximo.
- Eönwe, o Arauto. Carrega os estandartes de Manwë, sendo também seu mensageiro. Representa a comunicação e a iniciativa.
- Melian, a Jardineira. Cuida das flores de Vána e das plantas medicinais de Estë. Representa a semeadura de ideias e projetos que irão germinar.
- Olórin, o Sábio. Aprendiz de Nienna, representa a sabedoria silenciosa que busca em todos os acontecimentos — mesmo na lamentação e na morte— ensinamentos valiosos.
- Ossë, o Mar Revolto. É servo de Ulmo, e rege os mares revoltos e tempestuosos. Representa o estado mental de atribulação ou agitação.
- Uinen, as Águas Calmas. É serva de Ulmo, e também chamada a donzela do mar. Representa o estado mental de calma ou paz.
- Balrogs, os Instintos. São aliados de Melkor, representam forças instintivas que irrompem do inconsciente sem controle, mas que podem ser utilizadas de forma vantajosa, caso sejam controladas.
- Sauron, a Astúcia. Também se aliou a Melkor, e representa a sagacidade, a perspicácia e as estratégias. Caso seu poder seja controlado e utilizado corretamente, pode prover evolução e mudanças importantes.
- Istari, os Magos. Estão ligados a muitos acontecimentos importantes em Arda, e têm o papel de manter o equilíbrio, sendo agentes ativos na máquina do Cosmos. Representam também as fases da evolução de uma pessoa que está passando por uma jornada de autoconhecimento. Radagast, o marrom, é a matéria bruta alquímica no início da jornada. Gandalf, o cinzento, é o mago que iniciou a transcendência e está em seu percurso (completando-o na Terceira Era e se tornando Gandalf, o branco). Saruman, o branco, é o mago que alcançou a transcendência, mas ainda está suscetível a ser traído pelo Ego e pelas promessas de grandeza (o que ocorre na Terceira Era, quando é derrotado e substituído por Gandalf). Alatar e Palando, os azuis, representam o arquétipo dos Twins, e evocam uma psiquê equilibrada — porém, não há muitas referências a estes últimos ao longo das obras de Tolkien.
As Raças
- Elfos, a Intuição e o Ar. Os elfos estavam presentes na primeira música cantada por Eru e pelos Valar, e foram a primeira raça de Arda, sendo imortais (a menos que assassinados), e tendo o direito de ir passar a velhice junto aos Valar em seus domínios. São os primogênitos da Terra Média. Prezam pela ordem natural e lutam para mantê-la, e buscam conhecimento em visões e profecia, adorando as estrelas. Estão relacionados à intuição e aos aspectos do ar, possuindo grande espiritualidade e respeito pelos elementos da natureza. Representam os aspectos mentais de transcendência e libertação do mundo material.
- Humanos, o Sentimento e a Água. Os humanos foram a segunda raça de Arda, também estando previstos na Canção Primordial, e sendo abençoados com a dádiva da mortalidade, quando podem descansar e seus espíritos vão para os Salões de Mandos. Embora sejam mais frágeis do que os elfos, desempenham um papel importante nos acontecimentos das diversas Eras. Representam os aspectos mentais relacionados a sentimentos, e a água que se adapta e se molda ao ambiente.
Outra raça que vive perto de rios e se molda aos ambientes, migrando de tempos em tempos, é a dos Hobbits, porém na literatura de Tolkien não há maiores informações sobre sua genealogia, ou sobre quando surgiram em Arda.
Sabendo que os anões haviam sido criados, Yavanna criou os Ents para protegerem suas árvores, permitindo assim que o equilíbrio fosse restaurado em Arda após Aulë ter realizado algo que não estava previsto na Canção.
- Orcs, a Razão e o Fogo. Melkor aprisionou e torturou alguns elfos, no início da história de Arda, e assim eles se tornaram Orcs. São descritos como maus e cruéis, porém são mestres na manufatura de máquinas e engenhos, principalmente relacionados à guerra. Estão relacionados à conquista e à invasão de regiões inteiras, mas também consistem em um vetor de mudança, que permite a evolução e a ramificação das raças, além da expansão para novos territórios. Representam os aspectos mentais da lógica e da razão puras, que devem ser controladas para que não causem danos, e não sejam usadas de forma puramente maléfica.
Há ainda uma ramificação da raça dos Orcs chamada de Uruk-Hai, com maior estatura e mais inteligente. Os instintos e a razão descontrolados foram dominados e conseguem desenvolver estratégias mais elaboradas — porém ainda voltadas para a guerra, sobretudo devido ao controle de líderes perversos.
- Anões, a Sensação e a Terra. Criados e escondidos nas profundezas das montanhas por Aulë, os anões foram descobertos por Eru, que logo se zangou ao ver que um dos Valar havia criado formas de vida, uma vez que esta tarefa era reservada a ele e somente poderia ocorrer mediante o planejamento da Música Primordial. Eru mandou que Aulë os esmagasse com seu martelo; porém, ao ver que eles haviam adquirido vida, e que tinham aprendido a linguagem que Aulë desenvolveu para eles, ficou com pena, e permitiu que vivessem (esta passagem se assemelha à do Abraão bíblico, ao não sacrificar seu filho Isaque). Eles deveriam, porém, ficar adormecidos no subterrâneo até a chegada dos primeiros filhos em Arda, os elfos. Representam os aspectos físicos, como a saúde do corpo e os bens materiais, além dos metais e das riquezas ctônias. São decididos e intransigentes, porém firmes e seguros.
Além dos elementos citados, existem outros Maiar que são citados nas obras de Tolkien, além de outras raças, como os Trolls, as Aranhas, e diversas ramificações dos povos élficos. Há também descrições levemente diferentes dos Valar e Maiar ao longo das obras, porém o caráter geral de cada entidade é mantido.
Percebe-se também a grande similaridade com os arquétipos cristãos, o que pode ser explicado devido à grande devoção de Tolkien pelo Cristianismo. Os temas do inimigo (Melkor), da mãe (Galadriel) que expurga o mal e restaura a alma dos filhos, e das diferentes manifestações (Valar) de um Deus único (Eru) são alguns dos mais diretamente relacionáveis. Ao mesmo tempo, observa-se semelhança com as lendas Nórdicas, como no caso do guerreiro que enfrenta o dragão, e do anel da invisibilidade que instila cobiça na alma de seu usuário.
Em suma, pode ser observado que o Panteão de Tolkien é completo em si mesmo, e forma uma estrutura coerente para explicação da Terra (Média), podendo também ser utilizado para fins mágicos, ou interpretado na forma de alegorias remetendo a estados mentais e aspectos psicológicos.
Referência: O Silmarillion — J.R.R. Tolkien.