Magia do caos

Liber Tas: um manifesto pela magia libertária

Em pleno 2023, tem gente que acha que a Magia e a Política não se misturam. Mas na real não é bem assim. Política (do grego “assuntos da Pólis”) tem relação com tudo o que envolve decidir coisas em grupo, e se tem mais de uma pessoa já tem política. A crença (ou não) em mundos além do físico é política. A crença de como funcionam esses mundos também. As ideias de moralidade ou amoralidade associadas aos seres espirituais são políticas. E a forma como você lida com as crenças diferentes da sua é ainda mais política ainda.

Se existe um grupo com poder tentando minar a liberdade de crença de grupos minoritários, isso é também um interesse político, e deve ser combatido. Desde pelo menos 1184 (com o início formal da Inquisição) a Magia vem sendo combatida, então falar abertamente de magia é político pra caramba.

Por meio deste texto, descrevemos a forma pela qual compreendemos a conexão da Magia com os assuntos sociais, políticos, econômicos e ambientais que nos cercam. Acreditamos que tudo está interconectado, e que cada âmbito impacta os outros; com base nisso, as escolhas políticas devem ser feitas com consciência e senso crítico, e vamos detalhar como algumas das escolhas feitas no âmbito da magia têm importante relação com outros campos da vida.

Magia & anti-fascismo

Por volta de 1900 víamos muitos grupos mágicos surgindo e divulgando seus ideais. Alguns deles, como a Sociedade Teosófica, flertavam com o racismo, jogavam várias culturas dentro de “pacotes” e até mesmo inventavam informações históricas falsas sobre suas práticas religiosas, romantizando costumes e apartando signos de seus contextos nativos.

Em resposta a isso, surgiram também autores como Julius Evola e René Guenón que diziam “retificar” as doutrinas, eliminando elementos que consideravam invencionices e ocidentalização de tradições orientais. Mas, neste processo, estes autores também suprimiram qualquer traço libertário de tradições mágicas em prol de retornar a um suposto “estado de pureza” que só havia sido alcançado em regimes de sociedades controladas por religiosos.

O eixo dessas teorias é o perenialismo, buscando uma única tradição ancestral que seria “a verdadeira”, e combatendo as outras religiões e tradições. Não precisamos nem dizer que isso é uma aplicação do fascismo na magia, caracterizado pelo controle excessivo de um grupo sobre a sociedade, inclusive impondo sobre ela suas próprias crenças e valores.

Ao ler com atenção os textos, conseguimos perceber e denunciar este viés fascista, protegendo incautos de serem atraídos pelas suas palavras vazias, e nos certificando cada vez mais de que quem segue estes ideais não o faça por desconhecimento, mas sim intencionalmente — neste caso, corta-se o vínculo de uma vez.

O intelectualismo na magia

Boa parte do esoterismo ocidental e das religiões da Nova Era herda do cristianismo e das ordens iniciáticas uma visão extremamente intelectualizada e voltada para a tradição escrita. Basta se aprofundar na história da magia para encontrar sólidas evidências de que a maioria das formas mágicas possuem formações distintas daquelas que o ocidente cristão nos legou.

Apesar de ser recomendado a todos os praticantes de magia a dedicar estudos para conhecer melhor as raízes de suas práticas através do estudo, sabemos historicamente que muitas formas de magia não possuem a formação baseada no letramento. Mesmo povos com extensivos cursos de formação de feiticeiros e sacerdotes muitas vezes não transmitem o conhecimento de forma puramente racional.

Várias fés tradicionais de povos ágrafos e sistemas mágicos populares tem a sua forma de magia enraizada na cultura, sendo esta absorvida através da socialização e da mimetização dos hábitos dos mais velhos. Nem toda tradição é passada por texto ou por fala e várias delas são transmitidas através da vivência cotidiana.

Magia como ferramenta de luta

Uma das maiores evidências de que a magia é para todes e não apenas para sacerdotes ou iniciados, é a riqueza de práticas mágicas que pessoas comuns utilizaram ao longo da história para punir desafetos, auferir justiça, vencer guerras e sobreviver a batalhas.

A guerra, a fome, e diversos outros fenômenos naturais e sociais que fazem com que o ser humano precise lutar pela sobrevivência favoreceram às pessoas em todo lugar a criarem mecanismos mágicos que possibilitassem assegurar as vidas individual e coletivamente.

A ideia de que a magia serve apenas a aspirações metafísicas e à uma busca por “aprimoramento moral” ou “desenvolvimento pessoal” diz bastante sobre o lugar social ocupado por aqueles que perpetuam a superioridade destes caminhos mágicos em relação àqueles mais “mundanos”.

Luta de classes na magia

A magia sempre foi arma de populações subalternas para enfrentar e desafiar as elites. Desde o surgimento de impérios e reinos conquistadores, encontramos todo o tipo de feitiço que oprimidos usaram para suportar a arbitrariedade de seus captores. Feitiços contra reis, imperadores, tiranos e senhores de escravos são encontrados em diversas civilizações, possivelmente feitos por pessoas comuns buscando algum tipo de reparação cósmica.

A magia das elites, sobretudo aquela escrita ou atrelada diretamente ao mainstream religioso, ganhou uma sobrevida por ser mais fartamente registrada. Seja textualmente ou em vestígios do uso de materiais mais nobres e resistentes ao passar do tempo, as classes mais altas de povos antigos garantiram que suas tradições ficassem para a posteridade.

As práticas mágicas dos pobres, miseráveis e escravizados, no entanto são mais difíceis de sobreviver e muitas vezes é difícil diferenciar utensílios com fins mágicos de utilitários cotidianos. Isso não significa que estes não praticavam magia e nem asseguram um predomínio formal das práticas elitizadas sobre toda a população.

A inovação na magia

Estamos acostumados com a ideia de que tudo já foi inventado em magia, o que torna o mundo mágico extremamente resistente ao novo. O apego a fotografias estáticas do passado obscurece processos históricos de adaptação e transformação dos sistemas mágicos que conhecemos hoje.

Por um lado, é possível dizer o que não está conforme a tradição que chegou ao presente e dizer que coisas novas são incompatíveis com o que era feito pelos nossos ancestrais. Por outro, a ideia de uma tradição perene, resistente as mudanças sociais e tecnológicas, é ilusória.

A todo tempo em que se transmite as tradições do passado para o futuro, sistemas mágicos acumulam ligeiras modificações e alterações que normalmente tornam o mesmo sistema indistinguível do que era alguns séculos antes. Somos os herdeiros dos nossos ancestrais, não seus escravos.

O pseudo-tradicionalismo e as tecnologias na magia

Outra discussão importante na magia é o uso ou não de tecnologias no fazer mágico. Esta discussão está geralmente acompanhada por um profundo desconhecimento do que significa “tecnologia” enquanto o conjunto de “técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana” (definição do dicionário Oxford).

Papel, velas, escrita, agricultura, a matemática utilizada para cálculos astrológicos, a internet, as técnicas para produzir e manipular metais e ligas metálicas, tudo isso é tecnologia, e quem não entende isso acaba caindo em uma espécie de pseudo-tradicionalismo, dizendo que “não usa tecnologia” na hora de fazer um ritual, mas utilizando diversas tecnologias. A própria ação de se conectar à internet para expor sua opinião de “repúdio às tecnologias” já é contraditória, e talvez essa opinião seja melhor expressa por telegramas ou cartas (que também são tecnologias!).

Devemos entender que a humanidade cria tecnologias o tempo todo, e que por acaso algumas são mais antigas e outras mais novas, porém tudo o que consideramos antigo hoje já foi novo em algum momento. As formas de se pensar e praticar magia também evoluem, e enquanto as vertentes antigas estavam ancoradas no contexto e no modo de pensar antigo, as vertentes novas podem e devem se ancorar no contexto e no modo de pensar novos.

Infelizmente, não podemos deixar de enxergar que existe magia fascista, magia conservadora, magia presa em um binarismo sexual sem sentido, magia voltada para a defesa do status quo, magia voltada para a opressão das minorias. Mas podemos e devemos desconstruir e denunciar essas práticas nefastas, alertando para a sua própria hipocrisia ao defender valores do velho Aeon ou professar dogmas que nem sequer são capazes de seguir (ou nem têm a intenção de seguir) em suas vidas cotidianas.

Por uma Magia Libertária

A magia tem muitos componentes pessoais, que variam muito de pessoa para pessoa. Por isso, no máximo podemos mostrar o que funcionou para nós. Com base nisso você pode ir testando, anotando no grimório, percebendo como (e se) cada dica funciona também para você. Errar é parte do processo, por isso tenha sempre um banimento à mão. Achar que nunca mais vai errar na magia talvez seja um erro, porque sim, você vai errar, e com os erros vai planejar melhor os próximos ritos.

A magia [ainda] não é uma ciência exata. Então não acredite em pessoas que dizem ter rituais infalíveis, ou que algum item é necessário para a magia funcionar. Quando um grimório é escrito, ele contém os registros do que funcionou para o autor (e às vezes nem isso, ele só copiou de outro grimório). Mas não necessariamente vai funcionar para você.

Existe uma grande confusão sobre o que é necessário, ou seja, itens sem os quais o ritual nunca vai funcionar. Nada em magia é necessário. E também existe uma grande confusão sobre o que é suficiente, ou seja, itens com os quais o ritual sempre vai funcionar. Nada em magia é suficiente.

Na Magia do Caos, temos a possibilidade de criar rituais ecléticos, usando dicas de vários grimórios, sempre com respeito às vertentes originais. Isso nos dá liberdade para testar e experimentar. Você não precisa saber, obrigatoriamente, de nada. Inclusive algumas das bruxas mais poderosas do Brasil não sabem/sabiam ler nem escrever.

Além disso, a mentira de que “magia é só para algumas pessoas” vem sendo usada até hoje por pessoas sem conhecimento sobre a história da magia, e que querem proteger seus nichos de poder. A conversa é sempre a mesma: falam sobre diversos perigos, colocam medo, não ensinam e nem explicam o que fazem, dizem ser muito difícil aprender, e logo em seguida falam “deixa que eu faço!” cobrando caro por isso.

Fazer rituais para terceiros é algo usual, mas essa escolha deve ser feita por quem solicita o ritual, e não oferecida como única opção por alguém que defende a limitação do acesso ao conhecimento. Então já sabe: se falarem que a magia não é para todo mundo, CORRA BEM RÁPIDO porque a cobrança vem, seja na forma de um discurso elitista, ou de pix mesmo. Diga não aos ‘guardiães de portal’!

Magia é amoral, magia é anárquica, magia é para qualquer pessoa que queira!

Magia & Diversidade

Analisando as tretas históricas e os desdobramentos contemporâneos, podemos ter muito mais clareza sobre como a luta em prol da diversidade vem sendo travada na arena da magia. De um lado, observamos autores que professam uma tradição mágica “pura” ou “melhor” que as outras, justificada através de pretensa superioridade moral e, nos piores casos, civilizacional.

Do outro, minorias que nem sequer podem fazer suas práticas em paz, que precisam ser revalidadas o tempo inteiro sob a métrica de costumes e princípios que não compõem seu sistema de crenças. Dualidades são sempre conjuradas: Bem contra Mal; Perfeito contra Imperfeito; Magia Branca contra Magia Negra; foram métodos maniqueístas criados pelo status quo para dividir e conquistar, diluir culturas e converter tradições.

Se os deuses do outro são falsos, ou são demônios, fica muito mais fácil angariar pessoas para a determinada fé, e isso ainda destrói a diversidade de crenças e suprime a pluralidade interna dentro de uma mesma religião. Então vemos que essa suposta “moralidade divina” só atende mesmo aos interesses do fascismo e do retrocesso.

Como sempre dizemos, Magia é Política, e o principal é entender se a sua política na magia é capaz de celebrar ou de restringir a diversidade. Sendo assim….

Desinfluencie a sua magia!

Aprenda sobre o que achar interessante e faça a análise crítica!

Use o que serve, jogue fora o que não serve, com respeito e sem apropriação!

Construa seu próprio caminho com autonomia e responsabilidade!

Projeto Xaoz
Este projeto visa compilar, analisar e desenvolver as bases do conhecimento de sistemas mágicos.
projeto@xaoz.com.br